Joan Baez no Coliseu dos Recreios Emocionou com os seus Clássicos

Joan BaezReportagem de Joice Fernandes (fotos) e José Magalhães (texto)

Vista da frisa 1A, a mulher esguia de botas, jeans e longa echarpe vermelha sobre camisão branco pode ter entre 50 e 70 anos. Ou menos. Ou mais. Cabelo cuidadosamente grisalho. De súbito começa a cantar e liberta-se da idade.
Ateia fogo sem pressa. Uma baladinha hebraica (Dona Dona) que crianças poderiam acompanhar, só para a sala poder ter voz.
Não há crianças na sala. Plateia repleta de veteranos da guerra do Vietname, em todos os estados. Os que se vestem como se estivessem num picnic ou numa caçada, as damas solenes, cavalheiros de gravata ou de camisas à Varoufakis, uns em trajes de outono outros de verão, poucos na estação certa.

Baez fala em português. Treinou bem e segue a cábula aplicadamente, mas sem sofrimento.
“Dois homens e uma mulher. Eles lutam por ela. Morrem. Ela fica livre.”
Blues. Bob Dylan “It’s all over now, baby blue”. Ouvida como se fosse uma santa. As meninges rodam os slides dos tempos em que mesmo ouvir cantar o fim do amor cheirava a rebelião no Portugal Salazarento.
Nesta frisa onde me sento podia estar nesses tempos um Pide plenipotenciário ou o tipo mandão do Governo Civil.

Baez ataca a “Llorona”, com voz dolorida. O Coliseu ouve em estado de beatitude.
Desce a cortina do tempo. Culpa dela, porque se lembra de dizer que iria contar a história de um rebelde, um organizador: “cantei-a em Woodstock, vou cantá-la aqui”.
Mas caramba, Joana B., falas de tempos muito remotos. Já passaram carradas de presidentes pela tua Casa Branca. Por cá tivemos o Tomás em Belém até marchar para o Brasil, e também dez anos de Cavaco com um 25 de Abril pelo meio. Foi isto a nossa vida, pá! Quem diria que seria isto, quando te vimos em Woodstock.

A canção seguinte é de luta: “I dreamed I saw Joe Hill last night”. Soa perfeitamente atual.
Pequeno discurso de apologia da não violência e sai uma decente Grândola, com levíssimo sotaque. Apoio coletivo maciço dos veteranos, que pisam o chão como se tivessem as botas lendárias fazendo tremer o Coliseu.

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Entra o intimismo com ajuda da assistente Grace, que faz a segunda voz de “I love you the way you are “. Logo soa, quase sem hiato, um dos mais melancólicos hinos à fragilidade das paixões recordadas anos depois de se extinguirem. “Se me deste diamantes não podes dizer que não te paguei bem”. Sempre me arrepiou aquela sessão de contabilidade de afetos mortos. Agora a voz não se ergue ao Evereste dos anos 70, mas ainda sobe alto bastante para nos fazer recear que caia. Não cai.

Continua firme na melancólica balada da solidão (foi composta numa tournée): “How long since I spent the whole night in a twin bed with a stranger?!”. Discreto, o piano ajuda. A letra é uma tese sobre os encontros casuais, vividos sem pecado, dado o estado de necessidade.
“Corn bread” revela que a Baez ainda aguenta um pé de dança com um jovem cowboy que a maneja com excessivo cuidado.

Luzes vermelhas sobre o palco. Em ritmo de valsa lenta, “House of the Rising Sun”, com voz quente e apropriadamente rouca. O contrabaixo dialoga com essa voz noturna, com naturalidade, como se estivessem na casa e o dia estivesse longe.

Ninguém estranha quando chega a hora de “Suzanne”.
“Suzanne takes you down to her place near the river, You can hear the boats go by you can spend the night beside her, And you know that she’s half crazy but that’s why you wanna be there, And she feeds you tea and oranges that come all the way from China, And just when you mean to tell her that you have no love to give her, Then she gets you on her wavelength and she lets the river answer, That you’ve always been her lover. [Chorus] And you want to travel with her, And you want to travel blind, And you know that she will trust you, For you’ve touched her perfect body with your mind.”
Leonard Cohen desce sobre nós e Baez não precisa de explicar-nos quem é e ao que veio. Quantos concertos fez esta mulher antes e depois da queda do muro de Berlim? Centenas… Sabe virar o barco da melancolia e pôr a assistência num saloon onde alguém toca um banjo. Falta o fumo e os tiros do duelo da praxe.

É o adeus! Seria o adeus, porque somos portugueses. Nem a Baez consegue escapar-nos

Pateada rija. Com prémio: uma versão prudente do “Forever Young” e um “Imagine”. Lenon cantado entusiasticamente em coro, veteranos mais afinados que no Heróis do Mar.
Segundo encore: “Blowing in the wind”, entoado como hino, fecha o concerto . Ite missa est. A senhora de cabelos grisalhos, pele tisnada e jeans vintage, retira-se. Oito minutos depois, a sala está vazia, mas há sorrisos nas Portas de Santo Antão. Devemos agradecer à vida quando saímos a sorrir de um concerto de sobreviventes de tantas guerras. 

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