Cascais Abana A “Cauda” Ao Som De Snarky Puppy

Reportagem de Daniel Carvalho (Texto) e Ana Filipa Correia (Fotos)

O dicionário da universidade de Cambridge não tem uma entrada para o termo “snarky”. Felizmente, o dicionário urbano vem prontamente em auxílio, oferecendo uma definição da palavra como uma forma de discurso com um tom emocional, que possui sarcasmo envolto em atrevimento e descaramento, com um toque de irreverência. Trata-se de uma definição que se depreende imediatamente: quem nunca esteve em presença daquele tipo de cão espertinho, armado em carapau de corrida, que nos olha de soslaio enquanto ladra?

Para além de contribuir decisivamente para o título “ao estilo do Correio da Manhã”, a definição deste primeiro parágrafo acaba por ajudar a catalogar, com surpreendente facilidade, a música. Nasce de uma mistura de elementos de jazz, funk, world music e pop-rock, e tem um carácter e uma personalidade muito próprios, com boa disposição e, lá está, irreverência.

Mas já lá vamos porque, antes deste cão sarcástico/atrevido/irreverente, temos de dar conta do que lhe antecedeu, no Hipódromo Manueal Possolo em Cascais, nesta noite ventosa e pouca típica do mês de julho. Já no início deste ano tivemos oportunidade de ver o jovem britânico Jacob Collier no Teatro Capitólio: aqui está o relato desse concerto.

Pois bem, o moço regressou a terras lusas e, desta feita, esteve a abrir o concerto desta noite, para gáudio das hordas de adolescentes, que gritaram, de forma adolescentemente histérica, a cada cinco segundos da sua prestação. O formato foi muito parecido ao que vimos – da setlist, aos saltos e até às calças de harém (exactamente iguais) – pelo que, sem desprimor para o jovem (ele que me perdoe), vamos avançar sem mais delonga para os cabeça de cartaz.

Voltemos aos “Senhores do Cão” que ladra de forma atrevida. Não se trata propriamente de uma banda mas sim de um colectivo de músicos, liderado pelo baixista Michael League.

Com cerca de 15 anos de existência, este colectivo normalmente faz-se representar, ao vivo, com quase tantos músicos quantas as velas no bolo de aniversário. Isto embora os últimos álbuns de estúdio (Culcha Vulcha e Immigrance) tenham sido feitos com dezanove músicos. Ao longo dos anos foram vários os nomes sonantes que passaram temporariamente por esta formação, tais como Stanley Clarke, Roy Hargrove, e até mesmo Snoop Dog e Justin Timberlake. E, claro, mais recentemente, o nosso moço imberbe de seu nome Jacob Collier.

O set arranca com “Even us”, um tema mais calmo e introspectivo, que parece servir para tentar enganar o público ou, pelo menos, os mais incautos. A ordem natural das coisas é rapidamente restituída logo a seguir, quando começamos a ouvir o ritmo e a dinâmica de “Semente” e entramos no registo que nos leva até “Bad kids to the back” e a um rico solo do saxofonista.

Michael League dirige-se ao público sensivelmente a meio do espectáculo. Para além da apresentação dos oito elementos que o acompanham, e de uma palavra a Jacob Collier, conta-nos a razão pela qual não esqueceu a primeira vez que estiveram em Portugal: o baterista Larnell Lewis teve uma reacção alérgica, em pleno concerto, ao marisco que comeu ao jantar. “He almost died but still sounded great”. Com amigos destes…

Passamos por “Thing of Gold” e, chegados à ponta final do set, League pede a intervenção do público. Divide a audiência em duas metades: a primeira terá a tarefa de bater palmas em tercinas (“the three side”) e a segunda em colcheias (“the four side”). A sobreposição destas duas figuras rítmicas tem muito groove mas não é fácil de executar, nota-se alguma luta das várias mãos dos dois lados da barricada rítmica durante o treino. Treino esse que serve para, a indicação de League, o público participar em “Xavi” – tema dedicado ao povo marroquino – executando a coreografia delicada e ajudando a encerrar o concerto.

Como é normal nestas coisas, o concerto raramente termina quando deve terminar. O primeiro encore é o clássico Shofukan, amplamente aguardado. E digo isto de forma ainda mais veemente porque, atrás de mim, um grupo de jovens espanhóis entoou (com surpreendente precisão) o tema várias vezes enquanto aguardávamos pelo início do espectáculo. Nesta fase, são já vários os espectadores que abandonam as cadeiras e dançam (abanam a cauda?) ao som e ao ritmo.
Escusado será de dizer que, chegados ao momento em que há uma melodia cantada (das poucas em temas deste colectivo), o público canta entusiasticamente:

Ah ah ááááááh áh ah aaaaah
Ah ah ããããããh ãh âh âââââh

Os snarkies puxam pelas gargantas afinadas do relvado, como se fosse preciso qualquer tipo de incentivo. O resultado é uma cantoria que dura não só até à última nota do tema, como também depois da saída de palco. Naquele hiato de tempo em que ainda não se sabe ainda cabalmente se vamos ter mais música, a linha melódica de Shofukan continua a ouvir-se a plenos pulmões.

E, de repente, assim que se vislumbra o regresso dos puppies, a melodia é, de imediato, substituída por uma ovação, gritos e assobios. Gritos e assobios esses que se acentuam e voltam a atingir um certo nível de histeria, no momento em que League anuncia que Collier se vai juntar e o moço entra a correr freneticamente pelo lado direito do palco. O tema é “What about me?” e o fantástico solo em despique de Collier, ao teclado, com o baterista, num longo crescendo, quase me levam a mim (confesso) à histeria. Antes isso que choque anafilático.

Tal como os outros músicos que, ocasionalmente, se juntam ao um núcleo duro estável dos Snarky Puppy, Collier pega, como se costuma dizer, de estaca. Inserido naquele colectivo, Collier cresce, parece ganhar uma maturidade que lhe acrescenta uns quantos anos no seu cartão de cidadão musical. Não que se trate de um espartilho, algo que corte as asas ao petiz e o impeça de voar os altos voos que muitos lhe vaticinam. É, ao invés, parecido a uma bicicleta com rodinhas pequeninas ou aquelas barreiras metálicas que se colocam nas pistas de bowling para evitar que as bolas vão parar às calhas. Há uma certa ingenuidade que desaparece, um copo de leite com chocolate que se transforma num tinto encorpado.  Atrevo-me a dizer que aquilo que mais gostei dele nesta noite não foi a actuação com a sua banda, mas sim esta colaboração num único tema.

No final, os mais resistentes ficaram, sem sucesso, a ganir e a latir por mais. Numa palavra: eléctrico. Ou não fosse este um evento patrocinado pela EDP.

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