CCB rendido à genialidade de Chick Corea

Reportagem de Tiago Espinhaço Gomes.

1405_chickcorea.ccb_011_site-2Sábado, 31 de maio. São 21h00 e o público ainda entra no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Não admira: esgotados os bilhetes, é esperada uma casa cheia para receber aquele que é um dos melhores pianistas da atualidade. No palco, domina um piano de cauda bem iluminado, rodeado por intensos lastros azuis.

Enquanto espero, leio o programa. “Um virtuoso incansável”, diz o The New York Times. “Um maestro venerado”, escreve  a BBC. “Um visionário”, acrescenta a Austin Chronicle. Não é para menos: Armando Anthony “Chick” Corea é uma das grandes referências do jazz contemporâneo, a par de pianistas como Herbie Hancock ou Keith Jarret.

Depois tocar na banda de Miles Davis, em 1966 o músico embarca numa carreira a solo. Desde então, conta com mais de 40 anos na vanguarda do jazz. São dezenas os álbuns gravados, com incursões tão diferentes como o fusion electrónico, o bebop ou o avant-gard jazz. E o reconhecimento, mais do que merecido: 20 prémios nos Grammys e mais de 60 nomeações.

Dez minutos depois aparece Chick Corea. Sorridente, começa por tirar uma fotografia ao público, que responde com o primeiro riso da noite. Simpático e dialogante, explica “não vou dizer o que vou tocar hoje, caso contrário teria de fazer uma promessa”. A audiência compreende perfeitamente: é na arte do inesperado que Chick mostra o seu maior génio.

Começa com uma improvisação de cerca de 10 min para “conhecer o piano”, segundo o próprio. O ambiente da audiência permanece a meia-luz. Não parece um concerto. Esta é a casa de Chick e todos nós estamos na sua sala de estar a passar um serão entre amigos.

1405_chickcorea.ccb_038_site-2Avança depois confiante para “Desafinado”, o tema brasileiro de Tom Jobim (esta noite sem a maravilhosa letra de Newton Mendonça). A energia com que faz vibrar o piano é contagiante. A música seguinte foi, segundo ele, ensinada pelo próprio Miles Davis. “It could happen to you” transporta-nos agora para um qualquer clube em Nova Iorque, em plena época dourada do jazz.

Entre cada interpretação, Chick vira-se de frente para o público e faz questão de explicar as músicas que toca. É impressionante: aos 72 anos de idade, não se refugia no mais que merecido estatuto de lenda viva do jazz. Descontraído e sempre simpático, Chick é um de nós. É agora tempo de um tema misterioso de Duke Ellington.

A quinta interpretação é momento para uma conversa um pouco mais longa. O pretexto merece: a próxima é de Bill Evans. Chick explica que em 1959 tinha-se graduado em Boston (Massachusetts) mas o seu maior desejo era ir para Nova Iorque, “because all my heroes were there”. Naquele tempo, “o Bill tocava com o Miles” (sim, Chick conheceu-os a todos). Havia uma música que ele gostava imenso: “Waltz for Debbie”. E assim arrebata o público com uma fabulosa interpretação desta bela valsa jazz. Estava feito o primeiro momento alto da noite.

A seguir, Chick diz que nos quer mostrar um pouco “do trabalho do [Thelonious] Monk”. É tempo de uma espécie de boogie-woogie ao som da música “Work”. No fim, Chick põe-se ainda mais à vontade. A temperatura foi subindo e é agora altura de tirar o casaco.

Entretanto levanta-se e põe a estante no piano. Há agora um elemento novo em palco: uma pauta de música. O público está expectante. Chick vai agora tocar “one of my favorite composers – Stevie Wonder”. A resposta da audiência com um grande aplauso foi instantânea. “Pastime Paradise” faz agora as delícias dos presentes. Foi o segundo clímax do espetáculo.

De seguida, o pianista avisa que vai tocar uma música de um autor muito diferente: Chopin, o brilhante compositor clássico polaco. O público está surpreendido mas dispõe-se a ouvir. Imprevisível e sublime! É tempo da maior ovação da noite. Entre aplausos, Chick diz-nos que é tempo de um intervalo. Ainda bem. Uma hora depois é tempo de apaziguar a alma.

Passados quinze minutos ouve-se o toque de aviso. A plateia enche-se rapidamente e as luzes baixam um pouco. Chick regressa visivelmente bem disposto: “you returned!”, exclama. Os risos da audiência são inevitáveis.

O pianista explica-nos que a segunda parte vai ser dedicada a composições suas. Este primeiro tema foi descoberto pelo próprio “entre as suas coisas antigas”. Mas avisa: “o título não significa nada, mas eu precisava de pôr-lhe um nome. Então escolhi a primeira coisa que me veio à cabeça: Continuously” (pelo menos, foi o nome que eu percebi).

A segunda música vem dos anos 80: “Yellow”. Chick dedica-a “ao amigo Paco de Lucia”. Explica que quando o via tocar, sentia uma aura amarela à volta dele. Ao longo da música, Chick percurte as unhas diretamente nas cordas do piano. Sente-se o calor espanhol e a intensidade do flamenco. O público acompanha a homenagem com uma grande ovação no final.

Entretanto, inicia-se uma nova conversa: “this is my last solo show and it gets lonely in the stage”, diz. O público não percebe o lamento, mas Chick explica-se imediatamente: “quem quer vir tocar comigo”? Há um destemido que se levanta e segue para palco (provavelmente com os seus 13-14 anos). Poucos acreditam no que vêem: Chick convida um qualquer desconhecido para um dueto improvisado. Vitor, é o seu nome. E totalmente às cegas, Chick vai acompanhando o rapaz com a sua magia. Impressionante! Enorme aplauso.

Depois deste grande momento, Chick insiste: “anybody else?”. Imediatamente há um voluntário que não perde a oportunidade. É a vez de Dinis, outro corajoso anónimo (agora com uns 18-20 anos). Nova improvisação fluentíssima. Parece ensaiado. Bem seguros, ambos seguem energeticamente. Chick desteme-se ainda a percutir várias cordas. Brilhante! No final, Chick pede uma salva de palmas de pé para os dois companheiros de jornada.

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Por fim, é tempo de tocar “Children’s songs” – um conjunto de 20 curtos sets compostos pelo próprio (editados em 1983). Este é agora um registo mais contemporâneo. Impressiona a naturalidade com que retira tantas sonoridades diferentes do piano, seja nas teclas ou diretamente nas cordas. Formidável. A audiência despede-se de Chick com uma grande salva de palmas em pé.

Chick sai do palco, mas volta. Não resiste a um encore. Explica que como esta é a sua última tour a solo, quer que o público cante um coro de cinco vozes: duas de homens e três mulheres. Eu limito-me a pensar: ele acha mesmo que isto vai correr bem? Para meu espanto, a audiência responde afinada apesar do acorde composto (alguém ensaiou?). Chick inicia a peça e vai fazendo sinal sempre que quer que o público entre em cena.

A meio, entra um tema de ritmo ibérico. Chick faz sinal e o público percebe: é suposto o coro repetir em uníssono as linhas de piano. Nem sempre é fácil, mas todos damos o nosso melhor. A meio Chick pede também palmas a marcar o ritmo. O público entusiasma-se cada vez mais. Chick vai dificultando a tarefa com melodias cada vez mais complexas. O público vai-se rindo mas não vacila! Chick pede ainda mais do público, que responde na mesma moeda. É uma orquestra de 2000 pessoas e um maestro visivelmente satisfeito. A música termina em apoteose e a plateia rende-se por completo. Infelizmente, duas horas e meia depois, é tempo de despedida. Chick sai de palco e já não regressa. É agora momento de digerir mentalmente tanta boa música.

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